A Turquia foi o destino de uma das viagens mais intensas que já vivi. Fui sozinha para Istambul, onde estive três dias, e de lá voei para Dyarbakir, no sudeste do país, onde me juntei a um grupo multicultural para participar como voluntária na reconstrução de uma escola. No regresso partilhei por e-mail com a família e amigos algumas fotos e um pequeno texto sobre a minha experiência. Isto foi em 2008.
Relembro, hoje, num dia triste e trágico uma experiência marcante que perdurou em mim mesmo com a passagem do tempo.
Um dos objectivos – e consequências, porque vinga – do terrorismo é alimentar o medo, a xenofobia, lançar o pânico e criar as divisões entre o “nós” e os “outros”. Volto hoje à Turquia que conheci por duas razões: porque a quero mostrar e porque na viagem sem retorno ao abismo da intolerância e do medo, espero nunca embarcar.
O Curdistão turco é um deserto. Não há água, não há emprego, não há dinheiro. Há crianças, há esperança, há sorrisos do tamanho dos rios Eufrates e Tigre que ali nascem e correm Anatólia fora. Mas à volta é só deserto. O maior projecto em que trabalhei foi na renovação de uma escola primária numa aldeia curda perdida naquele deserto. Apaixonei-me pelos miúdos. São espertos e curiosos como são todas as crianças, suponho. Mas há qualquer coisa no olhar e atitude das crianças curdas das aldeias perdidas, que conheci pela primeira vez. Uma certa altivez que não é superioridade, um certo orgulho que não é soberba, conjuntamente com humildade que nada tem a ver com a pobreza, muito espírito de união, curiosidade e respeito pelo “outro”.
Lições aprendi muitas. Envergonhei-me de algumas coisas em mim. Eles vivem muito o colectivo, o “nós”, e o meu individualismo (ir buscar um copo de água, em vez de dois, sentar-me sozinha em vez de junto de outros) fez-me corar por dentro algumas vezes. Ralhar com miúdos porque atiram pedras uns aos outros, até observar e perceber (ainda demorei algumas estúpidas horas) que as pedras são os únicos brinquedos deles, fez-me sentir uma ocidentalzinha cretina e presunçosa.
No meu roteiro…
…ficou Hassankeif, um dos sítios mais bonitos onde já estive. Corre o risco de não existir mais em alguns anos. Há um projecto para construção de uma barragem financiada por alemães e suíços (no total são 18 barragens em toda a região) que pode pôr debaixo de água milénios da História civilizacional de todos nós. Claro que nada foi feito em termos de estudos de impacte ambiental, porque essas coisas modernas são para os países ocidentais fazerem indoors. Longe de portas os civilizados europeus acenam com as notas e vai tudo a eito.
…há militares turcos em quilómetros sem fim de zona militar, com tanques e metralhadoras prontas a disparar. Dizem eles que andar fora do centro das cidades pode ser perigoso por causa dos atentados terroristas curdos do PKK (o Partido dos Trabalhistas do Curdistão).
…Mydiat, onde convivem mesquitas, igrejas e sinagogas.
…Dyarbakir, a capital não oficial do não oficial Curdistão. Ninguém fala inglês, muitos nem turco, só curdo, a comunicação foi para mim impossível, mas raras vezes, completamente sozinha e sem conhecer ninguém, me senti tão confortável e tranquila num sítio. Bizarro.
…e claro, Mardin..a cidade deitada ao Sol numa encosta no meio da planície da Mesopotâmia, com casas em tons de amarelo, arquitectura esculpida a bisturi, pessoas sempre prontas a ajudar e papagaios de papel que todos os finais de tarde voam sobre os céus da cidade, lançados por crianças em vários cantos. A partir de agora, um papagaio de papel a voar no céu será sempre um pedaço de Mardin, para mim. E não consigo deixar de pensar que se a minha viagem fosse uma música acho que era uma Aquarela…
Aquarela
Numa folha qualquer
Eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas
É fácil fazer um castelo…
Corro o lápis em torno
Da mão e me dou uma luva
E se faço chover
Com dois riscos
Tenho um guarda-chuva…
Se um pinguinho de tinta
Cai num pedacinho
Azul do papel
Num instante imagino
Uma linda gaivota
A voar no céu…
Vai voando
Contornando a imensa
Curva Norte e Sul
Vou com ela
Viajando Havaí
Pequim ou Istambul
Pinto um barco a vela
Branco navegando
É tanto céu e mar
Num beijo azul…
Entre as nuvens
Vem surgindo um lindo
Avião rosa e grená
Tudo em volta colorindo
Com suas luzes a piscar…
Basta imaginar e ele está
Partindo, sereno e lindo
Se a gente quiser
Ele vai pousar…
Numa folha qualquer
Eu desenho um navio
De partida
Com alguns bons amigos
Bebendo de bem com a vida…
De uma América a outra
Eu consigo passar num segundo
Giro um simples compasso
E num círculo eu faço o mundo…
Um menino caminha
E caminhando chega no muro
E ali logo em frente
A esperar pela gente
O futuro está…
E o futuro é uma astronave
Que tentamos pilotar
Não tem tempo, nem piedade
Nem tem hora de chegar
Sem pedir licença
Muda a nossa vida
E depois convida
A rir ou chorar…
Nessa estrada não nos cabe
Conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe
Bem ao certo onde vai dar
Vamos todos
Numa linda passarela
De uma aquarela
Que um dia enfim
Descolorirá…
Numa folha qualquer
Eu desenho um sol amarelo
(Que descolorirá!)
E com cinco ou seis retas
É fácil fazer um castelo
(Que descolorirá!)
Giro um simples compasso
Num círculo eu faço
O mundo
(Que descolorirá!)…
Bem haja pelo seu olhar límpido e mensagem de esperança! Em tempos turbulentos é tão bom saber que a bondade existe! Albertina Palma
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Muito obrigada pela mensagem, Albertina. Um grande beijinho
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